Cap. III - A Cidade do Caos


     Em um motel vagabundo de beira de estrada. Julian despertou para uma nova noite, mas se manteve inerte, não se moveu ao perceber que Kyra estava adormecida com a cabeça recostada sobre seu peito. Ele retirou os cabelos caídos sobre os olhos da jovem, acariciando levemente seu rosto. Ela estava adormecida nos braços de seu criador, de seu protetor. Repousando como se aquele abraço quente fosse o lugar mais seguro do mundo, um abrigo contra toda e qualquer tempestade, e talvez fosse. Nem ele mesmo sabia quais eram os motivos, mas sentia que deveria protegê-la de todos os males que a imortalidade oferecia, até que Kyra se tornasse forte e preparada o suficiente para seguir sua vida sozinha por toda a eternidade.




Julian percorreu os olhos pelo quarto a procura de um relógio. Não encontrou nenhum lugar que marcasse as horas. Vários lençóis e cobertores cobriam a janela e porta evitando que entrasse qualquer mínimo raio de luz no cômodo imundo. Ele não tinha como saber se ainda era dia ou se já anoitecera.
Elevou o braço com cuidado para não despertar a jovem adormecida em seu peito, pegando o telefone sobre o criado-mudo ao seu lado e ligou para a recepção.
- Alo! Aqui quem fala é Julian Delacroix do quarto nº 14.
- Sim, senhor. Em que eu posso lhe ser útil?
- Você poderia apenas me dizer se já anoiteceu?
- São exatamente 19h25min agora, meu senhor!
- Você é surdo? Eu não perguntei as horas; eu perguntei se já escureceu ou se ainda é dia! – Ele berrou com o recepcionista se esquecendo da bela jovem adormecida.
- Desculpe-me, senhor. Sim, já anoiteceu!
Kyra despertara com os gritos de Julian ao telefone
- Nossa! Vejo que acordou animado hoje. – A jovem ironiza enquanto limpava o canto dos lábios vermelhos com as pontas dos dedos.
Julian fez silêncio, apenas sorriu admirando a cena. Retirou novamente os cabelos caídos sobre os olhos da jovem, ela segura-lhe a mão e olhou com tristeza a cicatriz em forma de cruz começando na parte inferior da palma da mão e terminando no punho do rapaz.
- Isso foi por minha causa... Eu sinto muito. – Ela lamenta.
- Não se preocupe com isso. É apenas uma lembrança do dia em que lhe conheci. Mais uma cicatriz para a minha vasta coleção.
- Vasta coleção? Não vejo nenhuma cicatriz em você, pelo menos não nas partes de seu corpo que estão à mostra.
- Tenho milhões delas, garota... Em minha alma. Carrego muitas feridas por dentro, algumas já cicatrizadas, outras ainda queimam... Essa pelo menos me remete você na lembrança, as outras já não trazem lembranças tão boas assim... Nada boas mesmo.
Ela percebe que estava dormindo nos braços de Julian e se afasta as pressas.
- Desculpe-me. Eu devo ter me virado enquanto dormia...
- Não se preocupe. É sempre bom acordar com uma bela mulher nos braços, mas juro que não aproveitei da situação.
- Eu sei, bobo! Você, apesar de ser meio sanguinário é um perfeito cavalheiro. Talvez o último deles.
Ambos se recompõem. Julian avisando que iria tomar um banho caminhou em direção ao banheiro, mas estacou no lugar ao ouvir o som do televisor ligado por Kyra. O noticiário reportando uma cidade em completo estado de caos.
- É a sua cidade! - Ele exclamou.
- Sim, é ela, mas o que será que está acontecendo?
- O que você acha? Não fomos eficientes na limpeza. Deixamos algum lixo para trás. Isso significa que precisamos voltar.
- Enlouqueceu? Aquilo está um inferno.
- Eu sei e logo estará pior. Isso é como uma bola de neve, se você não parar no inicio, ela irá crescer e crescer e crescer... Amanhã, nem mesmo o demônio em pessoa estará seguro na terra... Quantos habitantes têm a sua cidade? Cerca de uns três mil, mais ou menos?
- Sim, pouco mais de três mil.
- Isso significa que logo serão cerca de três mil vampiros, três mil possíveis Judas. Hoje uma cidade, amanhã o estado. E depois?
- Agora vejo que enlouqueceu mesmo. Julian, você ouviu o que você acabou de dizer? São cerca de três mil vampiros lá e, quantos têm aqui nesse quarto mesmo? Eu te respondo, dois... Dois aqui e três mil lá... Percebeu que tem uma pequena desvantagem nisso?
- Você não precisa ir se você não quiser. Eu irei só. Tenho a meu favor o fato de a maioria deles ainda não ter se alimentado de sangue. Nós ficamos mais fortes a cada nova vitima, a cada nova dose de sangue sorvido. Nesse ponto, eu levo séculos de vantagem.
- Agora que você falou... Eu me sentia mesmo mais forte quando mordia alguém.
Julian fitou Kyra com seriedade.
- O único que pode dar um pouco mais de trabalho é o causador de tudo isso. Aquele que deixamos para trás e deu início a esse inferno. É melhor mesmo eu ir sozinho, ele pode estar mais forte que você.
- Ai meu Deus! A minha mãe... A minha mãe está lá. Eu vou com você!
 Kyra se levantou da cama onde estava sentada em um só movimento parando defronte a porta do quarto, pronta para abri-la. Julian ri da mudança repentina de idéia da jovem vampira.
- E aquela conversa de dois aqui, três mil lá? Que é loucura voltar lá e bla, bla, bla...
- Eu vou e se você não for comigo... Irei sozinha.
- Claro que vou com você, menina! Sem mim você não vai à lugar nenhum.
- Então vamos, Conde Delacroix! Meu amo e senhor.
Ambos riem e deixam o quarto em direção a cidade maldita.
Um jovem casal em uma moto Virago 250 cc estacionou defronte a recepção do motel. O rapaz com jeito de ser bem rude para não se dizer estúpido, ordenou que sua acompanhante descesse da motocicleta e fosse pegar a chave de um quarto qualquer. Ela obedeceu cabisbaixa.
Enquanto ele aguardava a moça voltar, se deparou com uma deusa caminhando em sua direção, uma deusa em forma de mulher. Aquela imagem surreal o dominou por completo, cada movimento das curvas bem desenhadas tinha um efeito hipnótico sobre qualquer homem, seja ele mortal ou não. Os quadris, coxas, cintura, seios, tudo se completava, se encaixavam, formando uma das mais belas esculturas vivas já criadas por Deus. O rapaz quase desmaiou ao ver Kyra em seu andar luxurioso, passar levemente a língua sobre os lábios vermelhos. Completamente hipnotizado pelo olhar fatal da jovem vampira, ele esqueceu por longos segundos do mundo em sua volta. Kyra parou ao seu lado, dizendo sensualmente quase que sussurrando:
- Oi baby!
O motoqueiro lembrou-se da namorada e tentou virar o rosto para conferir se ela não estava testemunhando aquela cena, mas foi impedido pela mão de Kyra em seu queixo. Sentiu a respiração quente da moça em seu pescoço, com a boca bem próxima à seu ouvido... Ela sussurrou:
- Você é meu... Sua vadia está ocupada demais para se preocupar com você.
 Bruscamente, ele retirou a mão de Kyra de seu rosto se voltando para a entrada da recepção. Sua namorada estava nos braços de Julian, que cravou os dentes em sua apetitosa jugular. Antes mesmo que o motoqueiro pensasse em salva-la, os lábios de Kyra tocaram seu pescoço, dentes pontiagudos lhe perfuraram a pele, seu sangue escorreu em demasia ensopando-lhe o peito.
Julian terminou de sorver o líquido da vida de sua vítima e, como era de seu costume, esmagou a frágil cabeça da jovem contra a parede. Se voltando para Kyra, esta estava parada observando seu mestre em ação, ela manteve o braço envolto ao pescoço de sua presa ainda viva. Julian ameaçou dizer algo, mas foi interrompido pela vampira.
- Opa! Já sei, regra 3: não criar vampiros!
Em um só movimento tão suave quanto fatal, ela puxou o rosto do rapaz destroncando seu pescoço como se fosse um galho seco. Em seguida apontou a moto para Julian.
- Você sabe andar com isso ou quer que eu pilote?
Julian subiu na motocicleta, deu a partida, e com um sorriso irônico perguntou se ela aceitaria uma carona.
Kyra subiu mais do que depressa, abraçando-o pela cintura e, juntos rumaram em direção a cidade.
O vento nos cabelos, os braços de Kyra envoltos em sua cintura. Julian pensava que tantas pessoas procuravam por liberdade sem notar que ela se fazia presente nas coisas mais simples.
À poucos quilômetros de seu escopo, o nefasto motoqueiro avistou uma barreira, os policiais davam sinais com a mão para ele reduzir. Julian acelerou mais e continuou em direção aos carros posicionados de modo a bloquear a passagem para que não passasse nenhum automóvel, mas uma moto passava com sobras.
- Eles irão atirar contra nós! - Kyra gritou alertando-o.
- Eu sei! Por quê? Está com medo de morrer?
O jovem ironizou relembrando-a de sua imortalidade. Os policias abriram fogo atingindo-o no peito algumas vezes enquanto a jovem estava bem protegida em suas costas. Julian atravessou velozmente por entre os carros. Os projeteis acertaram a motocicleta, mas eles não pararam. Agora é Kyra quem estava desprotegida. Os disparos não cessaram. A jovem sentiu seu ombro esquerdo sendo atingido e soltou um grito de dor. A moto também foi danificada com os disparos e sofreu uma pane. Deixando-os novamente a mercê dos próprios pés.
- Bom! Pelo menos estamos mais perto. Caminharemos bem menos. – Julian disse com um leve sorriso nos lábios. Já Kyra ainda sentia o ombro doendo pelo tiro que levou.
- Nossa! Está doendo muito. É normal eu sentir dor?
- Você é imune à morte e não à dor, mas não se preocupe, a maior dor é a psicológica, logo você aprenderá a ignorá-la. Vamos andando...
Julian mal terminou a frase e ouviu um disparo mais forte que os outros ao mesmo instante que sentiu suas costas sendo perfurada por dezenas de projeteis. Uma dor incomensurável lhe tomou o corpo. Seus joelhos dobraram. De olhos fechados o rapaz suportou o martírio por alguns segundos. Pouco a pouco a dor deu lugar ao ódio. Julian voltou a abrir os olhos. Seu olhar agora estava todo negro, funesto. Kyra reconheceu aquele olhar do dia em que se conheceram e, já prevendo o que estava por vir, tentou acalmá-lo.
- Julian... A dor maior é psicológica. Ignore-a e vamos embora. Minha mãe pode estar precisando de mim... Julian?!
Ela não foi ouvida. Ele se levantou, virando-se para os policiais parados, estáticos, à poucos metros deles. Não acreditavam no que seus olhos viam, não acreditavam que ele havia se levantado. Julian fitou um por um procurando quem o atingira.
- Quem atirou em mim? – Ele perguntou aos oficiais. Tomados pelo temor eles não conseguiam responder e, muito menos fugir como as próprias pernas tanto pediam.
- Eu acho que foram todos eles! – Kyra responde a pergunta.
- Quem me deu esse ultimo tiro?
- Ah, esse nas suas costas?!? Foi calibre 12. Olha na mão daquele policial gorducho ali. – Kyra apontou para uns dos homens que tentou inutilmente esconder sua arma atrás das pernas trêmulas.
Julian se aproximou do sujeito. Com mesura elevou sua mão para que o gorducho lhe entregasse a arma, e assim ele o fez.
- Com certeza você não tem idéia do quanto isso dói. Se soubesse, não atiraria nas costas das pessoas, mas eu vou lhe fazer uma pequena demonstração.
O vampiro em um movimento rápido e brusco enfiou a espingarda na boca do policial e puxou o gatilho, transformando seu cérebro em milhões de pedaços. Ainda se dirigindo ao corpo decepado cambaleando em sua frente, acrescentou:
- Agora que você já sabe o quanto isso dói tenho certeza que não atirará em mais ninguém.
O corpo caiu. Julian Se dirigindo agora aos outros policiais perguntou em tom irônico:
- Mais alguém quer atirar?
- N-Não senhor... Não senhor. – A resposta gaguejada soara uníssona.
Ambos se puseram novamente a caminhar em direção ao inferno que a cidade se tornara. Ao longe tudo que se via eram chamas e fumaça.
- Ai meu Deus! - Exclamou Kyra
- Deus?!? Deus com certeza não tem nada haver com isso, minha cara. O nome desse caos é Kyra. Sorria. Orgulhe-se da desordem que criaste.
- Pode parar de ficar repetindo isso. Já sei que fiz besteira.
Adentraram a cidade comprovando o que já imaginavam. Vagabundos e viciados, agora, vampirizados. Saqueavam lojas, queimavam casas, depredavam veículos estacionados nas ruas. Toda a cidade parecia já ter sido atacada por esses animais famintos e sem escrúpulos.
Julian ouviu vozes, gritos e choro vindo de dentro de uma capela próxima. Andou em disparada com uma estaca nas mãos, pronto para começar a limpeza. Mas ao abrir a porta parou de forma brusca na entrada do estabelecimento. Dentro haviam varias mulheres com véus negros sobre os cabelos, seguravam rosários e choravam. Em pé à frente delas, um homem com a bíblia nas mãos gritava como um louco. Um amém uníssono ecoava das beatas misturando-se as lagrimas.
- Vamos Julian. – kyra o segurou pelo braço, puxando-o. – É só uma igreja, vamos!
- E por que eles gritam? Será que pensam que Deus é surdo?
- Vamos... Temos que encontrar a minha mãe.

2 Comentários:

Unknown disse...

Marcio, irmão, espero ansioso a continuação desta história! Julian e Kyra estão com um problema daqueles, não é mesmo? Vê se não demora para escrever e postar os outros capítulos!!!

audiencia da tv disse...

ola caro amigo
passei aqui pra dar uma olhadinha
no seu blog
gostei eu ja estou te seguindo
se quiser seguir o meu agradeço
tenha um bom dia
http://cleberbinhocomportamentos.blogspot.com/

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