Casas e automóveis em chamas, lojas sendo saqueadas. Vampiros usando uns aos outros como aríetes contra vidraças e portas de metal. Homens e mulheres correndo de forma insana aos gritos e choros histéricos. Vampiros perseguindo e sendo perseguidos por outros vampiros. Todos são, ora caçadores, ora caça. A presa sendo vampirizada e tornando seu criador a sua caça. O caos havia se propagado pelas ruas. Um vírus infectando as veias da cidade de forma rápida e devastadora.
Julian e Kyra param alguns minutos para avaliar o inferno que eles vieram enfrentar.
Kyra sente suas pernas tremerem, quando seus olhos demonstraram que o que a sua imaginação havia lhe omitido a real proporção do problema. O inferno é muito mais amedrontador quando lhe encara nos olhos. Kyra pensa em recuar. Fecha os olhos por alguns instantes, mentaliza apenas a imagem da mãe. Sabe que sua mãe está em perigo e que ela é a única culpada. Dessa imagem retira forças para encarar o que viesse pela frente. Ignorando o tremor em suas pernas. Kyra estava pronta para lutar até a morte.
Julian observa o caos lhe sorrir, como um convite silente para se juntar a festa. Pelo canto dos lábios, o vampiro sorri de volta, pronto para aceitar o convite. Pronto para assassinar o anfitrião e todos seus moribundos convidados.
Empunhando estacas improvisadas, o casal de vampiros inicia uma mórbida sessão de ataques contra todos que surgiam em sua frente. Kyra, velocidade e precisão; Julian, força e crueldade. Caminhavam deixando atrás de si um tapete de corpos. Cadáveres com os corações transpassados por estacas, por Kyra. Julian, como era de seu feitio, não se contentava apenas em matar, desmembrava ou degolava bruscamente suas vítimas, como se fossem frágeis bonecas de pano.
Para cada vampiro morto, outros dois surgiam à frente. Se dando conta de que o sol nasceria antes que fossem capazes de eliminarem todos os vermes imortais. Julian dá um leve sinal com a cabeça para que Kyra partisse à procura de sua mãe, enquanto ele sairia no encalço do criador de tudo aquilo, em busca daquele que deixaram para traz e deu início a esse caos.
A esta altura, a cidade já estava completamente sitiada. A polícia e o exército a cercaram para evitar que as centenas de repórteres e curiosos que vieram de todo o estado adentrassem àquele pandemônio aterrador. Alguns poucos repórteres, mais ousados, conseguiram transpassar a vigília militar e correram para a cidade em chamas. Os que entraram, não mais retornaram. Perdiam o contato com suas bases tanto pelos rádios de comunicação, quanto pelos celulares, fazendo assim com que o cerco militar se tornasse mais rígido. O exercito passou a disparar contra os que ousassem novamente ignorar a barreira de isolamento.
Na cidade, Kyra consegue enfim chegar em sua antiga morada, a casa de sua mãe, e logo na entrada sentiu um frio mórbido lhe percorrer a espinha ao ver que a porta dianteira da casa fora derrubada com extrema violência. A vampira pressente que algo de terrível havia acontecido e precisava ser rápida se quisesse ainda ver sua mãe com vida, isso, se já não fosse tarde demais.
O cenário encontrado no interior da casa causou ainda mais angústia na jovem vampira. Os móveis estavam destruídos, papéis, roupas e vidros espalhados por todos os lados, e Kyra avistou a imagem de sua mãe apenas no único quadro que como se agarrasse com força àquele prego simplório, ainda se manteve preso à parede. Um quadro antigo, o retrato de sua mãe segurando uma menina sorridente no colo, Kyra, aos seis anos de idade.
Kyra não contém a dor. A culpa lhe castiga, lhe açoita e lágrimas de sangue vertem de seus olhos ao ver ali, no retrato, sua bela mãe sorrindo e saber que aquele sorriso pode ter sido para sempre apagado e por sua total responsabilidade.
Ela caminhava a passos lentos. Suas lágrimas rubras insistiam em rolar dolorosamente. Sua angústia a queria acelerar os passos para encontrar sua mãe o mais depressa possível, o medo do que poderia, ou como poderia encontrá-la a fazia hesitar na busca. Kyra rememorava o tempo de infância. Lembrava dos sorrisos que sua mãe lhe tirava dos lábios, das lágrimas, tantas lágrimas que por sua mãe foram enxugadas de sua singela face, dos beijos de boa noite após as historias contadas sobre príncipes em contos de fadas. Kyra relembrava épocas antes a chegada do padrasto que fizera mudar totalmente a figura materna, épocas em que o nome de sua mãe soava de seus lábios como se fosse o nome de um anjo, que lhe amava e protegia e cada lembrança a castigava como um chicote lhe açoitando a consciência... Ela poderia estar morta.
Olhou todos os cômodos da casa cuidadosamente, só encontrando, assim como na sala, todos os móveis revirados em completa desordem e nem sinal de sua genitora. No quarto, mais sinais de violência e destruição e sobre a cama revirada, um pequeno adorno, um pingente em forma de coração, enfeite singelo do qual sua mãe nunca se separava... Mas algo a separou do pingente.
Um gritou de dor que mais pareceu um pedido de ajuda soou do lado de fora da casa. Um grito de mulher, um grito de sua mãe. Kyra deixando a hesitação de lado correu em direção ao som, encontrando caído no limiar da porta o corpo de sua mãe agonizando em seus últimos suspiros de vida.
Os olhos se encontraram e uma lágrima rolou pela face pálida da senhora ferida e de seus lábios, um nome fora sussurrado...
- Walkiria...
Sua cabeça tombou, o brilho de seus olhos sumiu deixando-os estáticos, sem vida, a respiração cessou... Ela estava morta.
- Mãe...
Kyra cai de joelhos ao lado do corpo inerte, ampara a cabeça de sua genitora com uma das mãos, enxugando-lhe a face com as pontas dos dedos da outra, fecha-lhe os olhos, deslizando, acariciando a face de sua mãe, toca-lhe os lábios ainda mornos...
- Mãe...
Mais uma vez de seus olhos vertem vermelho, lágrimas de sangue escorrem em abundância por sua face. Kyra grita por dor, chora por medo... Sofre por culpa.
Ela chora, grita, suspira, implora pela vida de sua mãe... Recorda-se de como fora salva por Julian, e n’um átimo de desespero a jovem vampira se projeta para um ataque à jugular da morta, mas um grito de advertência a fez recuar. Era Julian...
- O que está fazendo? Está louca? Ela já foi mordida e sabe o que isso significa. Mate-a antes que desperte para a imortalidade.
- Ela já está morta...
- Não está. Ela vai se tornar uma vampira, Kyra. Mate-a agora...
- Julian, é minha mãe. – Kyra diz entre soluços.
- Mate-a! Crave uma estaca em seu peito antes que ela levante ou eu mesmo o farei e juro que ela preferira que tivesse sido você. – o vampiro esbraveja enquanto avança com uma estaca em punho.
Kyra se levanta em desespero postando-se entre Julian e o corpo de sua mãe.
- Julian, não! Por favor, Julian, ela já está morta.
- Ela é uma vampira, Kyra. Você sabe que não podemos deixá-la viva. Mate-a agora.
- Não! Você está enganado. Ela está morta. Eu já a perdi. Não me torture mais, Julian. Você não tem o direito de violar o corpo de minha mãe. Ela está morta... Morta!
- Walkiria! – A voz feminina soa das costas da jovem vampira.
Kyra torna o corpo vagarosamente para confirmar que sua mãe, até então falecida, havia despertado para a imortalidade.
- Mãe... Me perdoe...
- Então a vagabundinha voltou para casa. Deveria ter adivinhado que tinha dedo seu nessa bagunça... Você só traz a morte, Walkiria.
- Mãe, não... – Kyra soluça de tristeza ao ouvir as palavras de sua mãe, e vê a estaca cair aos seus pés, jogada por Julian. Ela fita o vampiro nos olhos, e o vê movimentar os lábios sentenciando novamente... – Mate-a!
- Eu não posso... – Ela responde em voz sofrida, quase inaudível.
- Primeiro você matou o meu homem e agora você me matou. – Eleonora avança para a direção de sua filha apanhando velozmente a estaca do chão, segura firme o cabelo de Kyra que é pega de surpresa, o puxa para trás tombando-lhe o corpo e projeta a estaca para cravar no peito da jovem vampira.
- Mate-aaaaaa! – Ordena Julian.
Kyra n’um ato de puro reflexo e instinto de sobrevivência, agarra o braço de sua mãe ainda no alto e num gesto firme muda a direção da estaca perfurando o peito da mesma.
Segurando a arma com firmeza, a jovem vampira empurra cada vez mais forte, transpassando o coração de sua mãe. Ambas choram. Kyra chora pela dor de ter que matar quem lhe pôs no mundo, lhe amamentou, lhe protegeu quando criança de monstros inexistentes. Eleonora chora a dor de ter a pele rompida, o coração perfurado, a vida novamente lhe deixando o corpo e pelas mãos da sua filha que tanto odeia.
Eternos segundos de sofrimento e enfim Kyra solta sua mãe, deixando-a cair de joelhos no chão com a estaca ainda cravada em seu peito, Eleonora e Kyra se entreolharam pela última vez antes que a vampira mãe tombasse o corpo para trás, sem vida.
Kyra chorava a dor. Soluçava sem conseguir desviar os olhos do corpo de sua mãe. Um filme passava pela sua cabeça em flashes. Sorrisos, lágrimas, surras, carinhos, e o trágico fim, duas culpas. Sua mãe ter se tornado vampira, e ter que assassiná-la por isto. Kyra chorava a dor em vermelho.
Julian se aproxima devagar abraçando-a por trás. Amparando-a em seus braços. Sente que ela precisava de seu peito, de seu apoio para não desabar.
- Por que, Julian? Por que eu tive que matá-la? Por que você me fez assassinar a minha própria mãe? – Ela repete entre soluços, procurando respostas aos fatos que sua cabeça não conseguia entender.
- Para lhe fortalecer. – O vampiro lhe responde.
Uma estridente gargalhada sarcástica irrompe o melancólico momento e ambos os vampiros se viram para fitar em cima do telhado de um sobrado próximo, um novo vampiro em insana alegria, comemorando do alto, a cidade se queimando sob seus pés. Vibrando com a destruição e desordem nas ruas e casas.
- É ele... - Julian intui ser o vampiro que deixaram para trás na noite anterior.
- Klaus... – Sussurra Kyra.
- Você o conhece?
- Dizem que violentou e assassinou sua mãe e irmã antes de, assim como eu, passar a viver pelos becos.
- E você o imortalizou?! - Julian indaga incrédulo.
- Era um presente para você...
O vampiro fita repreensivamente Kyra nos olhos, seu olhar descrente de tal fato disse mais que mil palavras para a jovem vampira que vergonhosamente abaixou a cabeça.
- Espere aqui.
Julian aconselha Kyra, mas antes que partisse em direção de Klaus, é impedido pela vampira.
- Espere! O sol irá nascer em minutos. Você não deve correr o risco.
- Preciso apenas de alguns segundos para calar essa hiena maldita e já volto. – Julian insiste.
- Não, Julian! Não vale a pena se arriscar dessa maneira. O sol logo nascerá limpando a cidade, vamos nos abrigar no porão da casa de minha mãe se não quisermos ser varridos junto com esse lixo.
Contrariado Julian concorda com a prudência de Kyra. Dando uma última olhada para trás antes de adentrar a residência de Eleonora e fita o malicioso sorriso de Klaus pelo canto dos lábios, como se zombasse da cara de Julian, fazendo-o se enfurecer e retomar a decisão de matar o zombador ali mesmo, mas novamente é impedido pela mão de Kyra em seu braço.
- Não!
Eles se abrigam no porão da casa enquanto o sol ganha o dia lá fora. Enfim o exercito invade a cidade com seus tanques, motos e miríades homens a pé munidos de armamento pesado de todos os tipos, mas o que encontram é uma cidade vazia, palco recente de uma tão terrível quanto inexplicável batalha onde se desconhece os soldados. Não houve vencedores, não houve sobreviventes, não havia ninguém para contar o que realmente houve ali. As casas e lojas ainda queimavam, e pelas ruas se viam apenas carros em chamas, vidraças estilhaçadas por todos os lados e centenas de roupas de homens, mulheres e crianças espalhadas pelo asfalto e delas o vento soprava... Cinzas.